TRABALHO SOB A ÉGIDE NEOLIBERAL: A PRECARIEDADE COMO NORMA
Os voy a recordar
Quien paga aquí las pensiones
La dependencia La escuela o la sanidad
El héroe esto anónimo de clase de obrera
Que de su humilde cartera
Se hace el estado del bien estar
Quien paga aquí las pensiones
La dependencia La escuela o la sanidad
El héroe esto anónimo de clase de obrera
Que de su humilde cartera
Se hace el estado del bien estar
Ska-p.
ESTE É MEU ARTIGO NA ÚLTIMA EDIÇÃO DA REVISTA FILOSOFIA, CIÊNCIA E VIDA, JUNTO COM MEU AMIGO E INTELECTUAL ANDRÉ STUCHI A RESPEITO DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO
TRABALHO SOB A ÉGIDE NEOLIBERAL: A PRECARIEDADE COMO NORMA
A primeira onda neoliberal que
varreu o mundo dos anos 1970 a 1990, é coetânea, não aleatoriamente, do
desmonte do agente hegemônico do bloco socialista, a URSS, que vê suas crises e
contradições internas se agudizaram no decorrer dos anos 1980 e a derrocada em
1991. Nesse contexto, a reação dos governos da Europa ocidental, com especial
enfoque na Inglaterra, será a de alívio.
Pode-se notar que o avanço do
processo de precarização e da ideologia neoliberal caminham num momento de
convergência de muitos fatores:
a) a crise estrutural do Capital,
iniciada na década de 1970 e que tem como forma de manifestação, na superfície,
a assim chamada crise ou choque do petróleo, em 1973;
b) a possibilidade de uma ofensiva
da exploração na relação Capital-trabalho com o desmonte da alternativa
socialista, ao término da URSS;
c) a possibilidade de
potencialização das taxas de extração de mais-valia, pela adesão a novos
modelos de organização do trabalho. Assim, as sucessivas reestruturações
produtivas vividas desde a década de 1970, visam reverter o processo de crise
geral do sistema, bem como reverter a queda nas taxas de lucro;
d) a possibilidade de avanço nos
ataques aos direitos trabalhistas numa conjuntura que, desde a década de 1990
amplia o espaço da concorrência entre trabalhadores: se até então o mercado de
trabalho era nacional, agora é o mercado global, forçando a disputa entre
trabalhadores dos mais distintos países com os mais distintos níveis salariais
e de vida;
e) a possibilidade nessa conjuntura
de transnacionalização e desorganização da classe trabalhadora, de ampliar aos
limites do absurdo as taxas de extração de mais-valia, numa conjunção de
mais-valias absoluta e relativa, caracterizando a superexploração da força de
trabalho, em especial no espaço da periferia e semiperiferia do capitalismo
global;
Todos esses fatores, colocados em
marcha, em associação direta ou apenas concomitantemente, não significam que há
uma racionalidade geral organizativa, mas um movimento mais ou menos organizado
das classes possuidoras. Para que obtenha o caráter de certa unidade, essa
classe expressa seus interesses por meio das ações do Estado, e na junção de
fatores citados, é possível intuir as lacunas que permitem o desmonte do Estado
de bem estar social e todo seu significado e o avanço de políticas neoliberais.
O neoliberalismo é aqui entendido,
sumariamente como um conjunto de práticas e ideologia do atual patamar de
desenvolvimento do capitalismo, em seu permanente estado de “crise terminal”,
que pode durar um longo período ainda, mas que não permitirá recuperações
miraculosas como em outros momentos históricos, vide 1929. Nessa situação, as
políticas neoliberais figuram como medidas de realocação dos recursos estatais
dos fundos públicos para a iniciativa privada, bem como de conversão do Estado
em repressor de conflitos sociais.
Se no Welfare State o Estado
adquire um papel de regulador dos conflitos e um provedor de recursos que
compensam relativamente as disparidades sociais, o Estado neoliberal é
enunciado como o Estado veilleur de nuit (Estado guarda noturno), ao
qual Gramsci faz menção, em seu caderno carcerário, “cujas funções se limitam à
tutela da ordem pública e do respeito às leis” (§6, Q.26, p.85), sobretudo, ele
cumpre um papel policialesco, de repressão ativa a toda forma de
insubordinação, seja por meio da ação policial direta, seja por meio da
sujeição formal a leis cada vez mais cerceadoras.
O outro papel desempenhado pelo
Estado é o de transferência de fundos públicos para a iniciativa privada,
como se a regulação do metabolismo social correspondesse às ações do mercado,
entendido por essa ideologia como o ambiente da liberdade, ao passo que o
Estado é compreendido como o elemento regulador/repressor. O que não se coloca
em questão é que a liberdade à qual os neoliberais fazem alusão é a liberdade
do Capital, de ter destravadas quaisquer restrições e quaisquer pudores quanto
às formas de maximização dos ganhos.
Há dois aspectos importantes a
serem abordados, por um lado a tendência que se apresenta é a de completa
desregulação estatal das relações de trabalho, o que implicará nos próximos
períodos numa retirada de todos os direitos trabalhistas historicamente
conquistados. Isso implica diretamente numa crescente precarização do trabalho,
sob novas formas de exploração (trabalho intermitente, uberização, trabalho
informal crescente, contratação temporária) e todas elas chanceladas pelo
Estado, no limite, na forma de sua omissão, sob alegação de não intervenção, de
liberalização do mercado.
Tal processo não acarretará,
conforme propalado num aumento das taxas de empregabilidade: a famigerada
escolha “direitos ou emprego” é falaciosa. Pelo oposto, resultará numa
crescente instabilidade econômica e na pauperização da classe trabalhadora, que
não mais poderá recorrer ao amparo do Estado como mecanismo para refrear a
ofensiva da superexploração.
Por outro lado, é preciso
considerar na atual conjuntura o elemento identificador da classe trabalhadora
e sua possibilidade de enfrentamento. Quer seja pelo deslocamento dos postos de
trabalho para o terceiro setor, que dispersam trabalhadores, seja pela
aquisição de novas tecnologias no campo da produção, seja ainda, pelas
implicações da ideologia neoliberal, a fragmentação da classe trabalhadora tem
se apresentado como um elemento de difícil reversão. A construção de uma
unidade, de uma consciência da própria condição assalariada, parece cada vez
mais complexa.
O dique do Welfare State que objetivava,
dentre outras, conter uma possível onda crescente de socialismo, que arrastasse
as classes operárias de toda a Europa rumo à tão sonhada revolução mundial,
pode, finalmente, ser desmontado, e o desmonte não tardou. Em pouco tempo,
Margaret Thatcher e Ronald Reagan, no outro lado do Atlântico Norte, colocaram
em marcha o plano.
Evidentemente nenhum dos dois
arriscou-se a pôr em marcha uma tão radical mudança sem antes tê-la provado em
um campo de testes. Os teóricos do neoliberalismo tiveram-no disponível e,
especialmente Milton Friedman, que depois nega, pode ativamente participar da
experiência. Paladino da liberdade como era o autor, frise-se, fez questão de
praticar suas teses na economia de uma das mais brutais e sanguinárias
ditaduras, a de Augusto Pinochet, no Chile da década de 1970.
A ausência de uma contrapartida, de
uma alternativa, seja pela brutalização total da sociedade, como no caso
chileno, que teve seu horizonte sequestrado, seja pela ação das reformas
impostas a pauladas, como nos casos estadunidense e inglês, é o ponto chave
para a implementação dessa primeira onda. Se não há uma alternativa, a única
realidade que existe é a do capitalismo e, sob seu domínio, aceita-se sua
voragem, ou o quê?
Não é lugar de discutir a dialética
acerca do refluxo e abalo no movimento operário frente à ofensiva neoliberal,
mas cabe frisar que estão intimamente relacionados. O fim da “alternativa
soviética”, nos anos 1990, representa a última cena dessa primeira onda. As
respostas a esse fim de uma era foram inúmeras, desde o catastrofista fim da
história, de Fukuyama, até outro, não menos catastrofista de fim do trabalho,
do grupo Krisis.
Autores menos incautos deram sua
contribuição a esses dois temas de forma muito produtiva. No segundo caso, o
agravante é a falta de percepção acerca da diferença entre trabalho assalariado
e trabalho fabril. E aqui entra um outro elemento determinante, a transformação
tecnológica pela qual o trabalho fabril passou no decorrer do século XX.
A classe trabalhadora do século
XIX, século de Marx, constitui um grupo mais ou menos homogêneo de pessoas
sujeitas às condições do trabalho fabril, o que implica dizer que existe uma
certa uniformidade, uma possibilidade mediada pela forma de organização do
trabalho, de reconhecimento da pertença ao mesmo universo. Isso não diz
respeito à consciência de classe, no sentido marxiano ou leninista, em hipótese
alguma, mas à possibilidade de reconhecer uma unidade, um comum, no conjunto
organizado dos proletários fabris.
O início do século XX representará
a reafirmação desse princípio e seu aprofundamento, uma vez que a adoção do
modelo taylorista-fordista de produção molda ainda mais o perfil do operário,
na vestimenta, no desempenho da função, nas relações de trabalho, pouco se
diferenciam os trabalhadores fabris de uma ou outra empresa, bem como pouco se
diferencia a forma de organização e exploração da força de trabalho.
A adoção do modelo toyotista, a
flexibilização no processo produtivo e a cada vez mais constante automação e
robotização da produção, irão não apenas redefinir o perfil do operariado
fabril, como reduzi-lo numericamente, deslocando a proeminência do setor
secundário para o setor terciário da economia como grande gerador de empregos.
No dia 31 de
agosto de 2016, o presidente Michel Temer assume a presidência do Brasil, com
grande repercussão positiva dos meios de comunicação dominantes no país.
Uma das
características fundamentais desse governo é a forte relação que possui com o
mercado, aprofundando políticas iniciadas por Dilma e dando um caráter ainda
mais devastador ao modo de se governar, entregando as riquezas nacionais,
cortando gastos em serviços básicos, e retirando direitos dos trabalhadores
antes conquistados com muita luta.
Desde Marx se sabe que o capital
funciona pela exploração da força de trabalho, com aquilo que chamou de mais-valor
(ou mais-valia). Dessa maneira, os proprietários dos meios de
produção extraem o tempo de trabalho dos que vendem a força de trabalho em
troca de um salário.
Os proprietários dos meios de
produção necessitam sempre de novas formas de se produzir bens de consumo e
serviços, para se destacar na competição com seus concorrentes, produzindo
mercadorias a preço mais barato sem reduzir seus lucros.
É por meio da mais-valia que
as formas de se produzir se modificam e tornam a competição por mais lucros
ainda mais acirrada, porém, Marx define dois conceitos na mais-valia. O
primeiro conceito é o de mais-valia absoluta, isto é, quando a
exploração do trabalho necessita de maior intensidade, o patrão aumenta o tempo
de trabalho e as metas a serem cunpridas sem aumentar o salário do trabalhador;
no segundo conceito, a mais-valia relativa, o patrão necessita de novas
técnicas e tecnologias para se produzir, reduzindo assim o número de
empregados, sem alterar significativamente os salários, e com isso reduzindo
seus custos e, consequentemente, maximizando seus lucros.
Em exemplos mais práticos, a mais-valia
absoluta se manifesta na flexibilização dos horários de trabalho que a Reforma
Trabalhista posta pelo governo de Michel Temer permitiu, nos chamados home
office, e nos “livres” acordos entre patrão e empregado nessa nova
legislação.
As transformações nas formas de
produção, como o aumento das demandas no setor de serviços, avanço tecnológico
nas empresas, e uma sobrecarga de metas imposta aos trabalhadores cria um
contingente maior daquilo que Marx e Engels chamavam de exército industrial de
reserva, isto é, os desempregados, sendo este um exemplo prático da mais-valia
relativa, uma vez que a disponibilidade de trabalhadores desempregados força
para baixo o patamar dos salários.
Para que o Capital se mantenha como
forma social dominante no mundo, as suas transformações devem estar focadas no
aprofundamento da exploração do trabalho, e o Estado, hoje supostamente inimigo
do empreendedorismo, assume um papel central nessas transformações, sendo ele o
de controle social. E para não haver uma maior resistência, se faz necessária a
extinção dos sindicatos, que historicamente garantem a manutenção dos direitos
mínimos laborais.
Uma das formas mais recentes de
adequação a essas transformações do capitalismo é a informalidade, aquilo que o
sociólogo brasileiro Ricardo Antunes chamou de “uberização do trabalho”,
em clara referência ao aplicativo Uber, onde motoristas ganham pelo
tempo de trabalho de motorista, sem reconhecimento do tempo ocioso, quando
permanece disponível, como componente do tempo de trabalho e sem o mínimo de
proteção trabalhista, e deixando parte do dinheiro de seus serviços para o
prestador Uber.
Esse novo conceito vem acompanhado
de outro, a pejotização, que consiste em criar em exigir de cada
trabalhador a criação da pessoa jurídica, com um discurso ideológico de cada um
ser “empreendedor de si”, “chefe de si mesmo”, “ter liberdade para trabalhar
para quem desejar” e outras cantilenas.
Para Antunes, um notável exemplo
dessas mudanças laborais é o de uma modalidade perversa de uberização do
trabalho chamada de zero hour contract, criada no Reino Unido, em que o
trabalhador espera a chamada para executar algum serviço, sem hora de trabalho
definida (daí o termo), ganhando somente o salário relativo ao tempo em que
produz, arcando com as próprias despesas. No caso do Reino Unido, esta prática
já está avançada, e ela abarca diversos ramos de trabalho, desde trabalhadores
da limpeza, eletricistas, cuidadores de idosos e/ou deficientes, até médicos,
enfermeiros e advogados (ANTUNES, 2018, p. 34).
Para Antunes, essa nova modalidade
de trabalho uberizado, pejotizado, flexível, impôs aos trabalhadores
metas (como nos empregos fixos), assediando-os de forma a deixá-los enfermos e
deprimidos, a ponto de gerar suicídios. Este tipo de assédio foi de tamanha
proporção, que levou à demissão do CEO da Uber. E a justiça britânica
reconheceu que as empresas buscavam essa modalidade de trabalho para burlar a
legislação trabalhista, e portanto, reconheceu a obrigação dessas empresas em
estender os direitos trabalhistas vigentes a essa nova categoria (ANTUNES,
2018, p. 35).
O mês de novembro do ano corrente
marca o primeiro aniversário da reforma trabalhista, que objetivava uma
modernização nas relações laborais, conforme diziam seus proponentes e os seus
favoráveis. O conjunto de medidas que visa “flexibilizar” direitos
trabalhistas, eufemismo para sua parcial ou total cassação, seria a responsável
por uma súbita dinamização econômica, gerando, alegavam, muitos empregos e
solucionando, ao menos remediando a crise em curso.
Celebrado o aniversário, há pouco a
comemorar, os jornais propalam a informação de que pouco se alterou em termos
de aumento de emprego ou fim da informalidade. Resta pouca euforia, exceto
pelas bodas da precarização e do pensamento neoconservador aproximado a
tendências da direita mais extremada. Ainda que matizada, em tempo e espaço, a
aproximação mais corrente foi com as tendências fascistas que vicejaram numa
Europa de crise do entreguerras. Se o conceito não é válido para a explicação
do fenômeno, nos serve, in limine, como sinalizador de mudanças num período de
crise, não apenas econômica, mas de crise social.
O modelo adotado pelo país parece
caminhar na contramão de tudo aquilo que os especialistas apontam como vias
para o desenvolvimento econômico, dentre outras coisas, encontra-se a premente
necessidade de combate às desigualdades socioeconômicas, pauta que parece estar
tão distante das intenções do atual governo, quanto daquelas já manifestas pelo
governo vindouro. Não são poucos os sinais que apontam tempos sombrios para o
campo do trabalho assalariado, que ainda que sofrendo transmutações em forma e
conteúdo ao longo do tempo, ainda não perdeu seu sentido mais profundo e sua
identidade última: ser trabalho assalariado.
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