Análise de sistemas-mundo: uma aproximação sobre a teoria e sua metodologia


    Algumas questões são dadas como pontos quase consensuais entre os pesquisadores e as pessoas não especializadas, de modo geral, quando o assunto são as transformações do século XX e XXI. Duas delas são: I. que o tempo aparenta cada vez maior aceleração, bem como aceleradas são as transformações e inovações tecnológicas e; II. que a sociedade se apresenta como cada vez mais complexa em comparação com o passado, remoto ou recente, ficando a cada dia mais difícil compreendê-la e explicá-la.
    A tarefa de tentar apreender a dinâmica da sociedade cabe, sem dúvida, aos cientistas das humanidades (e masoquistas) mas antes dela, é preciso questionar algo fundamental: o instrumental teórico desenvolvido pelas ciências humanas no decurso histórico de sua formação, ao longo do século XIX e XX, é suficiente para explicar um mundo que se torna cada dia mais complexo e vertiginosamente mutante?
    Essa inquietação não é tão nova como possa aparentar e muitas propostas interpretativas já foram formuladas, por diversos tendências teóricas das ciências sociais. Cada uma delas, em geral, limitada em sua segmentação afim, com um repertório de conceitos específicos e um enfoque próprio sobre os objetos de análise, assim temos respostas filosóficas, sociológicas, geográficas, geopolíticas, históricas à questão suscitada por este debate.
    Foi pensando no campo específico de sua ciência, a história, que Fernand Braudel (1902-1985) iniciou, a partir da década de 1940, uma série de investigações sobre o próprio conteúdo da análise histórica que praticava, e das correntes historiográficas formadas desde os primórdios da “oficialização” da História como ciência moderna no século XIX, a partir das práticas de Leopold von Ranke.
    Cabe lembrar que Braudel tornou-se um dos maiores expoentes de uma corrente da historiografia que viria a revolucionar essa ciência, a Escola dos Annales, fundada ainda nos anos 1920 por March Bloch e Lucien Febvre, com o objetivo de ressignificar a prática historiográfica, até então fortemente marcada pela visão positivista do séc. XIX. Tomando parte nessa mesma perspectiva, - a da necessidade de uma crítica à historiografia tradicional e oficialesca – Braudel será propositor de uma interpretação que busque ampliar os horizontes da própria ciência histórica.
    Segundo o autor, a especialização que havia criado as diversas ciências sociais modernas e as havia dividido, cada qual com seu objeto e seu ângulo de análise específico, acabou por enclausurá-las e subtrair sua capacidade de análise dos fenômenos sociais, sempre apreendidos de forma parcial. É dessa reflexão crítica que surgiram os escritos publicados entre os anos 1940 e 1950, reunidos no livro História e Ciências Sociais, que transformaram toda a concepção de história a partir de então e introduziram um novo elemento na análise, a ideia de longa duração (longue durée).
    Braudel advoga a tese de que para explicar a história, ou seja, para dar sentido a uma interpretação da sociedade, é preciso romper as barreiras que separam as ciências sociais, daí seu apreço pela nova forma de conceber a antropologia, introduzida pelo estruturalismo, e sua busca pelo entendimento da economia a partir de uma perspectiva histórica. Segundo ele, a temporalidade analisada pelos economistas é sempre a curta duração, o que permite enxergar um recorte temporal muito restrito, enquanto, por outro lado, a historiografia tradicional (quando o faz) tem uma visão excessivamente panorâmica, de prazos tão extensos que não contemplam as nuances em seu interior.
    Nem uma nem outra pareciam apresentar interpretação satisfatória, ou discernir entre o que é conjuntural e o que é estrutural na história. A longa duração, como conceito, seria, portanto, a temporalidade capaz de fazer essa distinção e identificar nos processos históricos a construção dos elementos estruturais que sustentam e emolduram um determinado período. Essa concepção também tem influência de uma tradição econômica de origem marxista, que considera que a economia tem uma ciclicidade, oscilando entre momentos de crescimento e de crise, vinculada à teoria dos ciclos seculares propostos pela análise de Kondratieff. Esse tema, por si só, já é um capítulo à parte, merecendo tratamento mais profundo em outro momento.
    Somadas essas duas concepções, a das estruturas construídas, “uma realidade que o tempo demora imenso a desgastar e a transportar, […] dotadas de uma vida tão longa que se convertem em elementos estáveis de uma infinidade de gerações” (BRAUDEL, 1976, p.21) e a da necessidade de analisar a economia a partir dessa perspectiva da longa duração (e não a partir da conjuntura), surge uma concepção nova de história, ponto de partida de toda a articulação conceitual do autor, quer seja na análise do Mediterrâneo, quer seja na trilogia Civilização material, economia e capitalismo.
    Muitas interpretações posteriores tomaram a formulação de Braudel como referência, como se nota no entendimento do “longo século XIX”, que é como Hobsbawm denomina aquele século, em sua Era dos Impérios, ou o “longo século XX”, como Arrighi denomina esse período. Em todo caso, cabe entender que longo ou breve não são referências à medição de tempo cronológico (até porque, evidentemente, um século tem 100 anos, não é longo nem curto) mas aos processos históricos transformadores que criam um novo período histórico, uma “nova era” no desenvolvimento das sociedades. A longa duração corresponde às permanências históricas, estruturas que caracterizam um tempo histórico e que podem, em momentos de aceleração das transformações, como guerras e revoluções, ser destruídas ou transformadas.  
    Referenciado nessa interpretação histórica, Immanuel Wallerstein propôs, em 1974, na obra The modern world-system, uma análise que buscasse compreender as origens e o processo histórico de desenvolvimento do capitalismo. Partindo da premissa de que os elementos que se desenvolvem como caracterizadores do funcionamento da sociedade capitalista (tais como a mercadoria, a produção do valor e sua predominância nas relações sociais) já foram devidamente tratados por Marx, n’O Capital, cabe a esses autores a tarefa de identificar a construção e o funcionamento do capitalismo como processo histórico, ou o capitalismo histórico.
    Wallerstein também se vale do conceito de estruturas, caracterizadas como os “recifes de corais” das relações humanas, dada sua estabilidade por longos períodos de tempo, mas que também nascem, se desenvolvem e morrem (WALLERSTEIN, 1974, p.3)

Para Wallerstein, estrutura tem um sentido distinto daquele presente em Lévi-Strauss ou nos antropólogos estruturalistas: ela é construída num determinado momento da história e representa o conjunto de valores, regras e princípios políticos, sociais e culturais, mas fundamentalmente econômicos, que organizam a produção e reprodução da vida material e imaterial das sociedades, constituindo-se como aquilo que permanece mais ou menos imutável no decorrer de longos períodos (ALMEIDA, A. S., 2017, p.2)

    Postas essas premissas, a proposta da análise de sistemas-mundo é uma tentativa de apreender quais são os elementos que constituem, no decorrer do desenvolvimento histórico de um sistema, as pedras angulares, aquilo que permanece para além das oscilações conjunturais e cíclicas, como sua característica mais profunda, que permeia todas as esferas de sociabilidade: a econômica, a cultural, religiosa, moral, etc.
    Uma vez estabelecido o conceito de estrutura para os autores, cabe perguntar, então: o que é o sistema-mundo? Para Wallerstein, um sistema-mundo é um espaço dentro do qual as estruturas sociais encontram-se acomodadas e em pleno metabolismo. Corresponde, em termo geográficos, aos limites dentro dos quais é possível o funcionamento pleno de um sistema social e que, para além desses limites, os riscos da ampliação ou os custos de manutenção seriam grandes demais, maiores que as vantagens econômicas passíveis de se obter.
    O autor diferencia dois tipos de sistemas-mundo, os impérios-mundo, que constituíram, no decorrer do tempo histórico as grandes unidades políticas formalmente constituídas sob um poder centralizado, os grandes impérios históricos, como o romano, por exemplo; e as economias-mundo, sendo estas últimas caracterizadas pela dinâmica econômica que a rege e não pela formalização de um domínio político-territorial.
Nessa concepção, economia-mundo não é equivalente a economia mundial. A primeira refere-se aos vários sistemas de acumulação construídos no decurso histórico desde o século XV, nos enclaves italianos setentrionais do renascimento, sem necessariamente referir a uma economia que tem a extensão territorial do globo. Um dos pontos polêmicos no interior dessa escola é exatamente o debate sobre a origem do moderno sistema-mundo, ou economia-mundo capitalista, onde ocorrem discordâncias entre as concepções de Braudel, Wallerstein e Arrighi, por exemplo.
De toda forma, a unidade de análise proposta deve ser um complexo, não pode se limitar ao estudo dos Estados nacionais, tampouco às relações interestatais. Também não deve observar, de modo unilateral, apenas a economia e o modo de produção da vida material, devendo superar, a um só tempo, determinismos e autonomismo, tanto de quem assume um economicismo, quanto de quem defende a independência da análise do Estado e das relações políticas. Foge também às autonomizações do culturalismo. Mas onde reside, então, a unidade de análise dessa proposta interpretativa? Exatamente na apreensão das intersecções e nas determinações recíprocas dessas variadas esferas da vida material e imaterial.
    A crítica à divisão do trabalho intelectual reaparece. Nenhuma das áreas do saber tradicionais, em seu olhar específico, é capaz de compreender a totalidade do fenômeno social, sendo necessária a superação das disciplinas institucionalizadas. É por isso que a análise de sistemas-mundo não se reivindica uma teoria e sim uma perspectiva analítica. Muitas vezes é uma concepção acusada de tentar fazer a “grande narrativa” ou a “história total”. Na realidade, busca compreender como a formação de um sistema-mundo é totalizante, abarcando todas as esferas aludidas do metabolismo social.
    É, portanto, uma dupla crítica: primeiro, crítica às prisões do segregacionismo das disciplinas, típico do século XIX (e persistente até nossos), manifestando-se como denúncia da incapacidade e da limitação das ciências sociais, encarceradas nesse velho paradigma e, segundo, uma nova proposta de teorização, que amplia horizontes e incorpora contribuições de múltiplos setores das ciências sociais, buscando ampliar seus horizontes e possibilidades de diálogos interdisciplinares.
Ao partir das estruturas formadas na longa duração do tempo histórico e inserir-se num horizonte interdisciplinar, a análise de sistemas-mundo, mais especificamente a que se dedica ao moderno sistema-mundo, ou economia-mundo capitalista, apresenta um amplo repertório, capaz de interpretar os fenômenos das relações internacionais de modo mais satisfatório que outras conceituações como as propostas pelas teorias de globalização.
Apontando as discussões sobre essa teoria, Arrighi indica que os debates dos quais se origina a análise de sistemas-mundo remontam às discussões no seio do marxismo do início do século XX, preocupado em analisar a sociedade capitalista em sua totalidade, um tema que desaparece de cena com a ascensão do estalinismo e do “socialismo num só país”. Ela é, também, de uma genealogia diferente do conceito dominante de globalização, que reinaram nas décadas de 1980 e 1990, dada sua preocupação com a historicidade e desenvolvimento processual (ARRIGHI, 1998, p. 115).
Assim sendo, por exemplo, o complexo mercantil que estende sua atuação de Gênova, Florença, Milão e Veneza até os entrepostos do mediterrâneo, no Oriente Médio e no norte da África, bem como percorre a rota comercial até o distante império chinês, constitui uma economia-mundo, isto é, um mundo todo em si, pois realiza, dentro dessa extensão, todo o metabolismo da acumulação capitalista e deve ser visto em seu desenvolvimento histórico de longa duração.
Sucedendo historicamente a essa dinâmica, outras economias-mundo se formaram num longo processo histórico que sedimentou as estruturas da economia capitalista, até à revolução industrial e a posterior construção, sob o imperialismo britânico, de um mercado mundial, quando parecem coincidir, pela primeira vez, a economia-mundo, em termos de complexo econômico constituinte de uma totalidade, e a economia mundial, como extensão geográfica com abrangência global.
A hipótese sustentada é, no mínimo, tentadora e elegante: as estruturas da moderna sociedade capitalista, em funcionamento no tempo presente, têm suas origens históricas num passado muito mais remoto e é produto de sucessivas reordenações, acréscimos, ressignificações, preservando estruturas mais antigas do que aquilo que, de modo mecanicista, atribui-se como sendo consequências da revolução industrial. Enquanto a tudo anteriormente existente, se atribui uma lacônica pecha de acumulação primitiva, a análise de sistemas-mundo busca as fundações do capitalismo.
O grande mérito e inovação da teoria formulada originalmente por Wallerstein (mas rapidamente difundida entre outros pensadores) está na aproximação entre a visão de história de Braudel e a análise econômica de bases materialistas de Marx, especialmente enfocada no processo de acumulação, uma vez que essa é sempre realizada na etapa da circulação, momento crucial para entender as dinâmicas comerciais e das expansões em busca de novos mercados. O que não exclui a consideração sobre o processo de produção do valor, mas o entende como pressuposto implícito.
Um outro referencial teórico que apresenta-se fortemente nas formulações da análise de sistemas-mundo é a teoria do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo e, com seu repertório, a identificação de diferentes zonas, em distintos patamares de desenvolvimento, dentro de uma economia-mundo. A economia-mundo é sempre hegemonizada por um Estado, ou conjunto de Estados, que constitui o núcleo do sistema (core states). Existem depois desse, enormes zonas proximais, em condição intermediária, uma imensa área denominada semi-periferia, e por fim, na porção mais externa (em termos de desenvolvimento econômico e não necessariamente em termos geográficos), os países periféricos.
A identificação dessa “área cinzenta” denominada semi-periferia permite compreender as dinâmicas de articulação e integração desigual existentes nas relações interestatais e interempresariais numa economia-mundo. Observando as dinâmicas flutuantes e as oscilações desses países, como o Brasil, que constituem-se em economias de grande expressão, mas sem papel central nas esferas decisórias, mantendo uma subordinação aos países centrais, que pode variar de intensidade no decorrer do tempo, mas que nunca desaparece por completo, ao menos enquanto permanecerem vigentes as estruturas que sustentam a economia-mundo capitalista que, assim como todas as outras estruturas históricas, um dia perecerá.
As crises estruturais do capitalismo histórico em seu último momento, a partir dos anos 1970, levaram Wallerstein a propor que chegamos num momento de bifurcação na história. Para ele, o capitalismo chegou ao seu estágio final, não tendo mais possibilidades de se renovar ou constituir novos ciclos virtuosos de acumulação e prosperidade. Cabe, na urgência histórica do momento, decidir qual caminho seguir nessa bifurcação, se rumo ao caos social que consumirá a humanidade e o planeta numa vertigem autofágica crescente ou rumo a uma sociedade pós-capitalista organizada de maneira racional e que permita pôr fim à irracionalidade do sistema e criar uma sociedade mais harmoniosa e menos predatória, tanto para a natureza quanto para a própria humanidade.

Referências bibliográficas:
ALMEIDA, A. S. As crises hegemônicas e as guerras nos ciclos hegemônicos do capitalismo histórico. 2017. Disponível em: <https://www.academia.edu/37003862/As_crises_hegemonicas_e_as_guerras_nos_ciclos_hegemonicos_do_capitalismo_historico?source=swp_share>
ARRIGHI, Giovanni. Capitalismo and the modern World-system: rethinking the nondebates of the 1970’s. in:  Review: Fernand Braudel Center, v. 21, n.1, Nova Iorque: Research Foundation Of the State University of New York, 1998.
BRAUDEL, Fernand. História e ciências sociais. Lisboa: Presença, 1976.
BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo: sec. XV-XVIII. V.3 O tempo do mundo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
CHASE-DUNN, Christopher. Global formation: structures of the world-economy. Oxford: Rowman and Littlefield Publishers, 1998.
HOPKINS, T. WALLERSTEIN, I. World-systems analysis: theory and methodology. Londres: Sage Publications, 1982.
TILLY, Charles. Big structures, large processes, huge comparisons. Nova Iorque: Russell Sage Foundation, 1984.
WALLERSTEIN, Il. World-systems analysis: an introduction. Durham: Duke Univ. Press, 2006.
WALLERSTEIN, I. The modern world-system: capitalist agriculture, and the origins of the european world-economy in the sixteenth century, Nova Iorque: Academic Press, 1974.

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